Descreve-o assim João Gaspar Simões: «Estou a vê-lo, não muito diferente do retrato de Almada, nem alto nem baixo, um pouco corcovado, magro, o rosto oval, um ovo perfeito, se não se lhe afilasse com o queixo, que tinha diminuto e superiormente rematado por uns lábios finos, um pouco pálidos. Era a boca aliás, o traço mais expressivo da sua fisionomia. Nela pusera Almada a nota perversa do seu surpreendente esquisso. Vestia de claro — seria Maio ou Junho —, um fato bem talhado, e, velando-lhe em parte as sobrancelhas, um pouco depiladas, a aba larga de um chapéu escuro, que ele propositadamente inclinava sobre a orelha direita, e ao qual conferia poderes como que sobrenaturais.[1][2] Dir-se-ia que debaixo dele, desse chapéu, se resguardava, a seu talante, de qualquer inquirição óptica importuna a que por ventura o quisesse sujeitar o interlocutor. De facto, se tanto fosse preciso, falando connosco, tão baixo vergaria a cabeça — e com ela o chapéu — que se tornaria impossível ver-lhe o rosto. Sim, o rosto, mas muito particularmente a cintilação dos olhos. Era, em verdade, nos olhos que a sodomia de António Botto avultava, coisa que, aliás, acontece quase sempre com os sodomitas. Muitos, muitos anos passaram sobre esse nosso primeiro encontro. Estávamos já afastados havia muito quando o poeta abalou para o Brasil, tomado pela ínvia doença, de que nem ele próprio se dava conta — a paralisia geral. Mas, apesar dos anos que decorreram entre o momento em que conheci o requintado autor das Canções e aquele em que tento delinear-lhe o retrato físico, tenho, diante de mim, presente, muito mais presente que reprimida expressão da sua boca, a inquietante luminosidade das suas pupilas. De que cor? Cinzentas? Talvez castanhas, de um castanho desbotado. Não é, porém, a sua cor que importa, nem o desenho dos olhos de Botto, de um amendoado muito miúdo, mas a sua luz, uma luz como só se vê nas cavernas, nas minas, nos lugares muito profundamente cavados no solo, quando neles incide, perpendicular, o sol do meio-dia. Que de coisas elegantemente tenebrosas cintilavam nessas nada, mesmo nada, elegantes furnas!», Retratos de Poetas que Conheci, Brasília Editora, Porto, 1974, p. 167-169.